Manifesto: Condição Cerco Choreográfico

Estamos aqui e manifestamos uma complexidade de pensamentos
transformados pela encarnação de um acontecimento: o projeto piloto AMBARGRIS


Cercar é posicionar movimentos e idéias como lugares transitórios
- nem no centro, nem na periferia.
Lugar como condição e ato coreográfico de desestabilizar as forças que operam para que a dança exista (novas formas de vida). Somos autores desta Condição Cerco. Correnteza forte.




A escolha do que cercamos sugere que certas coisas dialoguem e co-existam intimamente, gerando a produção de calor que pode ser fonte de transformações dos limites aparentes que enrijecem a nossa percepção da existência. Tratando de cercar o movimento de muitas pessoas, esta condição é também uma abertura para um exercício de manifestar coletivamente as dinâmicas da vontade e do desejo. Em tempos como os nossos, desestabilizar as forças, senso e sentimentos comuns de "fazer parte do movimento de um grande número de pessoas". Durante o movimento criar este outro poder da dança como novas formas de vida, novos organismos, nos avizinhando do pensamento de MUNDO-ABRIGO de Hélio Oiticica:
"chegada gradativa a uma
experimentação coletiva
o dia-a-dia experimentalizado
não exclui - dirigir-se ao que é vida
a opção individual é a única
que pode optar pelo experimentar
como exercício-livre
(...)
MUNDO-ABRIGO é enviroment
não-naturalista: abrigo guarida
do comportamento em nível experimental
mais do que refúgio é procura de chance
de experimentar existencialmente"


Manifestação de um espírito de arte que não seja refúgio do mundo.
Do dia 11 de agosto de 2014 ao dia 1o. de março de 2015 aconteceu a primeira dança Ocupação Cerco Coreográfico na Sala Renée Gumiel na forma do projeto piloto Ambargris.

AMBARGRIS cerca os ritmos que dão vida ao conhecimento e criações de danças de diversas origens. O universo da dança muitas vezes está condicionado por expectativas e modelos gestados nas dimensões estéticas e econômicas do espetáculo teatral (mesmo que disfarçadas em aulas e processos de investigação), ou naquilo mais sedimentado em nossas referências culturais. O ato de criar um cerco coreográfico tem como meta deslocar a dança numa abordagem que faz vibrar uma espécie de estética da existência, tendo como consequência a imprevisibilidade, o caos e o desconhecido incontrolável. Emprestando o pensamento de Ai WeiWei de que: "Essa imprevisibilidade contem o verdadeiro significado da realidade. Porque a realidade acontece quando acontece. E aceitar esta incerteza é parte de nossa condição". Existem inerentes às escolhas de cada um que se propõe a experimentar o cerco, chances de caos. Algo de inapreensível reside nas zonas de trânsito entre as coisas aparentemente delimitadas.

A condição cerco coreográfico convida à invenção de passagens entre VER dança, SUAR dança, TRADUZIR dança, REFLETIR dança, expandindo a percepção do que
possa ser cada um desses nomes ou todos eles no mesmo instante. Esta estratégia tem como propósito DESTERRITORIALIZAR AS HIERARQUIAS CULTURAIS DA DANÇA: a coreografia como tempo e lugar rígido; o poder curatorial individual e institucional de autorização para sua legitimação pública; o ensino que estabiliza em terras firmes as disciplinas tradicionais de transmissão de conhecimento; os valores culturais que aprisionaram os ritmos de tantas danças que historicamente chegaram e foram apagadas ou reproduzidas nesta batalha cultural geográfica que poderíamos sintetizar nas idéias de um processo de colonização e imperialismo cultural, e mais recente, capitalista midiático, no entrave entre uma herança totalitária da cultura militar e da atualização da cultura da propaganda pelas bordas desta chamada revolução tecnológica.




Propusemos esta condição cerco como gesto artístico guiado pela intuição. A consciência destas idéias vem vindo conforme elas são encarnadas, apropriadas e
transformadas pelas pessoas num processo temporal – a partir disso é que cutucamos a ONÇA DA LINGUAGEM.

AMBARGRIS é uma curadoria disfarçada de coreografia, espetáculo disfarçado de aula, diálogo disfarçado de música, silêncio disfarçado de descanso, explosão difarçada de espetáculo, filosofia disfarçada em corpo, ocupação disfarçada em cerco coreográfico.

Foram mais de 16 cursos durante 5 meses, que mobilizaram mais de 500 pessoas para suas inscrições, e em média 60 pessoas em cada aula-aberta durante as 2 primeiras semanas de aulas abertas a qualquer pessoa; foram mais de 30 espetáculos de artistas paulistas e de outros lugares como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Estados Unidos, França e Espanha; mais de 20 noites com apresentações de mais de 100 Danças Breves, com mais ou menos 10 minutos, que juntaram no mesmo chão criações de alunos de Universidades, Programa Vocacional, Escola de Dança de SP, VAI, Academias; 3 residências artísticas de 5 meses cada, que resultaram na criação de 2 obras e nos encontros do Grupo de Improvisação Maria Duschenes; 5 bailes; 4 seminários para discussão das políticas de ensino e cultura que implicam a dança - num projeto piloto de um Observatório de Políticas para Dança; 2 cercos-coreográficos (grandes festa-rito); mais de 13.500 pessoas que compuseram os movimentos desta grande coreografia; mais de 2.500 pessoas por semana alcançadas pela divulgação na internet; resultando no movimento A Baleia Dança, que criou um manifesto por práticas continuadas de dança e colheu mais de 500 assinaturas.

Todos que passaram pelo complexo da Funarte em qualquer momento, com qualquer propósito, fizeram parte deste cerco coreográfico e existiram com substância desta dança de transformações. Cada artista, cada técnico, cada professor, cada aluno, cada funcionário da limpeza. O testemunho que compreende a totalidade integralmente é somente o espaço, e nenhum indivíduo. A sala Renée Gumiel tem olhos e é um corpo com vida, na medida que o movimento acontece, o silêncio e a pausa.

Extração da raiz infinita da dança.
Começamos observando o chão do palco e o imaginando como uma lápide
horizontal onde jaz toda a energia, o impacto e o suor dos artistas de diferentes
tempos e geografias. Quando dançamos hoje sobre este
chão-lápide
estamos sujeitos a esta condição forjada entre
passado-presente-futuro
em dimensões subjetivas e coletivas.

Então observamos a quarta-parede invisível que separa o palco do público, que
absorveu todos os suspiros, medos, alegrias, tudo aquilo que secretamente é
compartilhado. Magicamente, temos a impressão de que ela se torna translúcida
quando artista e público sentem esta opacidade dos
tempos perdidos.

A idéia de uma
extração da raiz infinita da dança
evoca a energia do ato de explodir
este
chão-lápide
e
esta
parede invisível
como resolução de uma equação matemática
impossível e infinita. O ato de explodir a arquitetura teatral invisível como força
coreográfica que abre caminho para o acontecimento
da dança.

Explosão que seja do
corpo para o infinito,
no campo da imaginação –
naquilo que transcende os limites
entre material e imaterial, subjetivo e coletivo –
com o espaço-tempo-explodido
suspenso de tal maneira que possamos recolher os vestígios em tempo real
mostrar publicamente os detalhes
e a energia desta explosão em
câmera lenta no ato da dança.

Se a "cerca" é uma limitação física fixa que propõe
a contenção do movimento, e
o "cerco" é uma tática de guerra, cerco coreográfico
é um rito coletivo que evidencia a dança como
existência simbólica transitória,
linguagem artística que se alimenta das limitações urbanas e políticas cotidianas.

O cerco coreográfico funciona como contenção dinâmica e represamento de
energia e tem como finalidade, no seu próprio acontecimento e provável
rompimento, a criação de um lugar-que-nao-existe.

Seguimos rumo a outros lugares. Ritualizar o teatro como cerco coreográfico.

Tirar o a tecnologia do aprisionamento do cálculo e
devolvê-la ao reino do ritmo. Círculos numerosos.
Nos encontrarmos ritmicamente para mover os tempos da
cultura. Não vamos em direção ao futuro.
Clímax corporal.
Muralha Viva